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  • Foto do escritorCristiano Chaussard

53 - Despercepção

Com o avanço tecnológico da medicina, da qualidade de vida e dos medicamentos, e por fim, com as estatísticas animadoras que têm sido divulgadas sobre o aumento da longevidade na população mundial, prometi a mim mesmo, viver até os 120 anos de idade.


Isso não porque eu quero ser velho por muito tempo, mas sim porque eu amo intensamente viver. Quero poder ser maduro por mais tempo e criar alguns legados para a humanidade. Arte, tecnologias, descobertas de alguns dos milhares de motivos para viver.


Apesar de tudo isso, bastou uma despercepção para eu perder toda a vontade de continuar vivo. Olhei pra baixo e enxerguei o abismo que se tornaria o meu legado.


A Suelen tratou de avisar os mais próximos com a seguinte mensagem:


Boa tarde grupo, Como vocês sabem buscamos que aqui seja um canal de comunicação direta e de transparência total. As vezes são fotos fofas, mas as vezes não são boas notícias. Eu e o Cris percebemos ontem a noite uma mudança no comportamento do Theo, após alguns testes identificamos que ele não está enxergando. A equipe médica está acompanhando e a primeira avaliação é que pode ser consequência da isquemia que ele teve no sábado. Não há como saber no momentos se é uma complicação temporária e, nesse caso, nem quanto tempo durará. Obviamente estamos preocupados e tristes com a situação, não há muito o que fazer no momento. Theo segue ganhando muito colinho e sendo feliz, pq ele entende muito bem a graça da vida. Torcemos que tudo melhore em breve, o pensamento positivo de todos é muito bem vindo. Mantermos vocês informados. Bjus!


Meu filho estava Cego por causa de um AVC. E eu não tinha como saber se isso era definitivo. Aquele instante foi infinito.

Escrevi aos mais próximos:

Todos vocês terão vontade de me perguntar como estou. Eu não gostaria de lidar com essa dor várias vezes, então vou dizer desde já para todos. Não podia ser diferente: estou devastado. A dor é muito mais aguda do que a do luto que passamos. Nesse momento não quero mais viver. O que me sustenta vivo nessas horas de dor aguda é a necessidade de amparar a Su. Theo sem visão, nesse momento para mim, significa a total perda dos dois de três sentidos/motivos que hoje tenho na minha vida: a própria existência dele que passa a ser tolhida por uma despercepção tão importante, a existência da minha arte, por definição, arte visual, e a felicidade da Su (motivo que me faz manter um resquício de vontade de viver). Não conseguiria dizer isso tudo por voz sem desabar. Por texto já é um momento profundamente duro, mas ao menos, não serão repetidas dores em explicar para cada um. O tempo atenuará e me seguro na esperança de que seja temporário como foi movimento do braço, mas nada sei. Só espero. Tá impossível cantar Blackbird hoje.

Blackbird era a musica tema da vida do Theo. E à medida em que a jornada avançava ela ia ganhando cada vez um novo e mais preciso sentido.

Pássaro Negro Pássaro negro cantando na calada da noite Apanhe estas asas quebradas e aprenda a voar Por toda sua vida Você só esperou este momento surgir Pássaro negro cantando na calada da noite Pegue esses olhos fundos e aprenda a enxergar Por toda sua vida Você só esperou este momento para ser livre Voe pássaro negro, voe Em direção à luz da escuridão noturna Voe pássaro negro, voe Em direção à luz da escuridão noturna Pássaro negro cantando na calada da noite Apanhe estas asas quebradas e aprenda a voar Por toda sua vida Você só esperou este momento surgir Você só esperou este momento surgir

Era uma escuridão que anuviava toda a minha descoberta da graça dos meus últimos anos de exercício da arte e da percepção, era uma despercepção.

Era uma total incapacidade de seguir em frente. Ainda assim, no amparo da minha única razão para continuar, segui ao inevitável próximo dia.


Avisamos aos terapeutas dele que precisaríamos adaptar o plano de desenvolvimento individual para a sua nova limitação e dormimos, para viver uma nova realidade. Indesejável.


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