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  • Foto do escritorSuelen Weiss

3. A Gestação

Mantivemos a doula informada da situação e ela nos auxiliou com muito material, apoio integral e visita para preparar e decidir tudo o que podia ser decidido no processo. Ela nos tranquilizou sobre nossos medos e nos acompanhou de perto.


Meu marido, fiel escudeiro, me blindou do mundo, do assédio e curiosidade de todos, o que foi muito bom mesmo. Nos recolhemos em casa para processar a informação. Durante meses mergulhamos num luto vivo, luto por um filho que ainda vivia e chutava forte o meu ventre. Vivemos todas as fases do luto, negação, raiva, barganha, depressão, aceitação. Intercalamos dias de total consciência da situação com dias de desespero e falta de chão sob os pés para seguir com o básico da vida.


Os sentimentos vinham em ondas, algumas mais brandas, outras devastadoras, com frequência as ondas de sentimentos se misturam, se contradizem. Passei madrugadas em branco. Chorei lágrimas incontáveis de pena, de amor, de sofrimento, de indignação, de expectativas mutiladas, de frustração.

Buscamos ajuda psiquiátrica, o que se mostrou indispensável no processo. Eu tinha medo de me afundar em depressão pós-parto, mas a ajuda foi muito mais ampla que isso. A terapia ajudou demais a entender e aceitar os sentimentos envolvidos, a buscar um centro novamente: o foco no amor de nossa pequena família em sua jornada surreal.

As infindáveis consultas e exames eram desgastantes. Salas de espera lotadas de felizes gestantes. A felicidade delas era tão ácida para nós. Outras puérperas com seus lindos bebês de revista… era como esfregar na nossa cara o que não teríamos, do que teríamos que abrir mão, do que teríamos que nos desapegar e despedir. Pior que isso eram as conversas paralelas com reclamações absurdas. “Você vai ter uma menino? Vai ver que é terrível, eles quebram tudo”. Eu só queria ver o Theo brincar muito, como qualquer criança, vê-lo quebrar meu vaso mais bonito ou a TV da sala. Outras abordagens diretas, aparentemente inofensivas, também eram de esvair a minha respiração. “É seu primeiro filho?”. “Será o primeiro neto?”. “Vai nascer quando?”. Eu não tinha aquela força. Chorava com o pouquinho de força que tinha.



No final de julho, nos braços do meu marido, decidi que era hora de parar de chorar. Reuni meus cacos e percebi que estava presenciando algo lindo, mágico: a vida do nosso primeiro filho, que seria curta mas eu faria com que fosse especial. Se já teve sangue, suor e lágrimas até aquele momento, teria também momentos alegres, música, chocolate, pizza, dança, praia. Não quer dizer que não chorei pelo Theo todos os dias restantes da gestação, mas passei a focar na serenidade do momento e a me preparar para o parto, que obviamente seria um momento importante na vida do meu filho e na minha. Esse teria que ser um momento, um ritual, uma experiência boa.


E assim seguimos. O plano traçado foi a indução do parto com 28 semanas, considerada a viabilidade do prematuro. Theo estava pélvico e, pelo que tinha pesquisado na internet, a versão cefálica não seria indicada com oligodramnia. Insisti com o médico em tentar o parto normal antes de decidir por uma cesárea porque perderíamos nosso filho, não o veria dar os primeiros passos, não o levaria à escola no primeiro dia de aula ou ao altar no seu casamento. Então essa era minha chance de interação, de ritual de vida com ele. Com 26 semanas o ILA estava em 4,3. Fizemos a ecocardiografia fetal, tudo normal com o coraçãozinho. Foram algumas horas de felicidades por ouvir elogios ao filho, mesmo que seja pela anatomia do coração. Coisas de mãe. Fizemos 2 aplicações de corticoesteróides para amadurecer ao máximo o pulmão. Quando chegamos às 28 semanas não conseguimos liberação da UTI de uma das maternidades porque não havia diálise disponível.

Em consulta, a geneticista concordou com o diagnóstico. Os exames laboratoriais para confirmação e detalhamento do problema genético ficaram para o pós-parto.

Com 29 semanas o ILA havia piorado, caindo para apenas 2. Já havia pedido ajuda da família para orçar cremação, se necessário, para que a verba estivesse disponível e não precisássemos pensar nisso no calor do momento.


Marcamos o parto para quando estivessemos com 30 semanas de gestação em outra maternidade, com mais recursos na UTI neonatal. E o que se leva na mala de maternidade quando o bebê provavelmente não vai pra casa? Levar roupinha? Levar fralda? Não há um guia desses casos nas revistas ou blogs sobre gravidez. Fiz seguindo os instintos, segui as dicas da doula: uma roupinha, um cueiro e um saquinho zip lock para guardar tudo com cheirinho como lembrança. Quando chegaram as 30 semanas partimos para a consulta com o carro pronto para o parto no mesmo dia, mala de maternidade, bola de pilates, kit de coleta de sangue para a pesquisa genética e todas as nossas expectativas acumuladas, ensaio de gestante feito, despedida do barrigão feita. Ao chegar na consultório descobrimos que não conseguimos liberação da UTI da nova maternidade, que tinha diálise peritoneal, mas que preferiu se esquivar de qualquer risco.


Ficamos irados, no mínimo. Eu me senti vazia, manipulada por não ter qualquer poder de decisão sobre o que aconteceria conosco. Avisamos a doula que já estava de sobreaviso e fomos para casa novamente; eu só queria dormir, apagar, quis muito um porre ou overdose (obviamente o não fiz por amor infinito ao Theo). A depressão voltou com tudo, apesar da medicação que já tomávamos. As forças tinham acabado mesmo. Providenciamos meu afastamento do trabalho porque raciocinar tinha se tornado difícil demais. Impotente, tive que assistir meu marido, meu grande trunfo e apoio, sofrer com crises de pânico e ansiedade, tentando todos os dias manter o equilíbrio entre picos de euforia e tristeza. Como doeu não conseguir ajudar de verdade.


Apesar de a perda gestacional/neonatal ser algo relativamente frequente na humanidade, as pessoas ainda têm muita dificuldade para lidar com esse tipo de luto. Aliás, percebi que todos fogem um pouco de lidar e compreender o sentimento de luto. Nós descobrimos tanto apoio de nossa família, amigos e colegas de trabalho que nos ajudou em todos os passos e aqueceu o nosso coração. Meu conselho para quem passar por algo assim é ter uma rede de apoio de qualidade e se possível acompanhamento profissional. Se você conhece alguém que está passando por isso, pelo amor de deus, pare de dizer coisas como “foi melhor assim” ou “logo você engravida de novo”, porque cada filho é único, especial e não será esquecido nunca. Ofereça apoio, suporte, paciência e abraços sem cobrar explicações.


A realidade de perder um filho é triste, mas no nosso caso sou grata por termos descoberto a condição cedo, pois nos deu a oportunidade de processar a informação aos poucos, buscar ajuda psicológica/psiquiátrica, aproveitar a gestação ao máximo, gerenciar expectativas e tudo que acompanha esse “pacote”.

E a gestação seguiu.

Continuamos monitorando o Theo a cada 10 ou 14 dias, que crescia em ritmo normal, batimento normal, com movimentação forte. Com 32 semanas o ILA voltou a 5,4. Normalmente, neste ponto, o quadro poderia ter evoluído para a ausência total de líquido (adramnia), mas isso não aconteceu. Assim, a indicação da via de parto mudou, já que poderíamos considerar uma possibilidade (ainda que pequena) de sobrevida do nosso bebê, conscientes que isso poderia significar um longo período de internação e necessidade de tratamentos agressivos como a diálise e transplante quando houvesse viabilidade.

No início da gestação eu tinha planejado um parto natural, mas quando descobrimos as complicações mudei meus planos para um parto com analgesia, com consciência e sem ressentimentos. Queria focar esse momento no rito de passagem em si e não na dor, se é que isso faz algum sentido. Nesse ponto já tínhamos entendido que a vida não tem rédeas, parto menos ainda. Mesmo que o plano inicial fosse um parto normal, não poderíamos entrar em crise se fosse necessária uma cesárea. Foi justamente o posicionamento clínico nesse momento. Se permitir mudar de ideia ou de planos pode ter uma beleza única, mas não é nada fácil, arde e coça na alma.

O plano de parto passou a ser uma cesárea o mais próximo possível do termo, que daria melhores chances ao Theo. Mesmo assim, para mim esse ainda teria que ser um momento, um ritual, uma experiência boa. Conversei com a doula que concordou com a mudança e aliviou demais o peso no meu coração. O parto idealizado ficaria para a próxima gestação.

Mas entre um ponto e outro (diagnóstico e parto) sabe o que tem? Tem tempo, tempo e mais tempo. Ah e como o tempo pode ser cruel, extenuante, dolorido, opressor. Numa gestação meio “Shroedinger”, esperamos ao mesmo tempo por um bebê que poderia não sobreviver ao parto ou então respirar com pouca ajuda; que poderia sobreviver por poucos dias ou poderia ficar meses internado e sedado em UTI na fila de transplante; que poderia ter as complicações associadas ao quadro de ARPKD de fígado, coração, pressão ou não.


Enquanto isso, a depressão não deu trégua não. Além do tempo tem o desgaste de dar satisfações o tempo todo para colegas, amigos, família quando tudo o que se tem são dúvidas. Cada satisfação desenterra todos os fantasmas do cérebro. Ao gerenciar as expectativas dos demais quanto à letalidade do quadro às vezes pode parecer que estamos desejando um final triste para a história do nosso filho, mas não é. É só a clareza da situação que esmagava nossos desejos e anseios. Eu só queria meu bebê no meu colo, mais que tudo.

Não quero parecer egoísta ou desdenhar ninguém, mas que inveja que me dava de quem passa o terceiro trimestre preocupada com alergias e chupetas.


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